Texto retirado do Livro "Cristianismo Puro e Simples" de C.S. Lewis, e uma ótimo livro se puder compre e surpreenda-se como pode ser puro e simples e cristianismo..
Somos confrontados, então, com uma alternativa assustadora. Ou esse homem de quem estamos falando era (e é) o que dizia ser, ou era um lunático ou coisa pior. Ora, parece-me óbvio que ele não era nem um lunático nem um demônio; conseqüentemente, por mais estranho, assustador ou insólito que pareça, tenho de aceitar a idéia de que ele era, e é, Deus. Deus chegou sob forma humana no território ocupado pelo inimigo.
Somos confrontados, então, com uma alternativa assustadora. Ou esse homem de quem estamos falando era (e é) o que dizia ser, ou era um lunático ou coisa pior. Ora, parece-me óbvio que ele não era nem um lunático nem um demônio; conseqüentemente, por mais estranho, assustador ou insólito que pareça, tenho de aceitar a idéia de que ele era, e é, Deus. Deus chegou sob forma humana no território ocupado pelo inimigo.
Agora, qual o sentido disso tudo? O que ele veio fazer aqui? Bem, veio ensinar, é claro. No entanto, assim que começamos a examinar o Novo Testamento ou qualquer outro escrito cristão, descobrimos que eles falam constantemente de algo bem diferente: falam de sua morte e ressurreição. É evidente que os cristãos julgam estar aí o ponto central da história. Acreditam que Jesus veio à Terra especificamente para sofrer e ser morto.
Ora, antes de me tornar cristão, eu tinha a impressão de que a primeira coisa em que os cristãos tinham de acreditar era uma teoria particular sobre o propósito dessa morte. De acordo com essa teoria, Deus queria castigar os homens por terem desertado e se unido à Grande Rebelião, mas Cristo se ofereceu para ser punido em lugar dos homens, e Deus não nos puniu. Hoje admito que nem mesmo essa teoria me parece mais tão imoral e pueril quanto me parecia, mas não é essa a questão que me ocupa. O que vim a perceber mais tarde é que o cristianismo não é nem essa teoria nem nenhuma outra. A principal crença cristã é que a morte de Cristo de algum modo acertou nossas contas com Deus e nos deu a possibilidade de começar de novo. As teorias sobre como isso ocorreu são outro assunto. Várias teorias foram formuladas a esse respeito; o que todos os cristãos têm em comum é a crença na eficácia dessa morte. Vou lhes dizer o que penso do assunto. Toda pessoa de juízo sabe que, quando estamos cansados e famintos, um prato de comida nos fará bem. Já a teoria moderna da nutrição, com suas vitaminas e proteínas, é coisa bem diferente. As pessoas já comiam para sentir-se bem muito antes de ouvir falar de vitaminas. Se algum dia a teoria das vitaminas for abandonada, continuarão almoçando e jantando como sempre fizeram. As teorias a respeito da morte de Cristo não são o cristianismo: são explicações de como ele funciona. Os cristãos não precisam todos concordar com a importância delas. Minha própria igreja, a Anglicana, não propõe nenhuma delas como a única teoria correta. A Igreja Romana vai um pouco mais longe. Creio, porém, que todas concordam que a coisa em si é infinitamente mais importante que qualquer explicação produzida pelos teólogos. Elas provavelmente admitiriam que nenhuma explicação é perfeitamente adequada à realidade. Como disse no prefácio do livro, no entanto, eu sou apenas um leigo, e nesse ponto as águas começam a ficar profundas. Só posso lhes dizer como eu, pessoalmente, encaro o assunto.
Do meu ponto de vista, o que se pede que aceitemos não são as teorias. Sem dúvida, muitos de vocês já leram os trabalhos de Jeans ou de Eddington[1]. O que eles fazem, quando tentam explicar o átomo ou coisa parecida, é nos dar uma descrição a partir da qual podemos elaborar uma imagem mental. Em seguida, nos advertem de que não é nessas imagens que de fato acreditam, mas sim numa fórmula matemática. As imagens só existem para nos ajudar a compreender a fórmula.
Não são verdadeiras como a fórmula é verdadeira; não representam a realidade, mas algo que se lhe assemelha. Têm a função de ajudar; se não ajudam, podem ser deixadas de lado. A realidade em si não pode ser representada em imagens, só pode ser expressa em termos matemáticos. Estamos numa situação parecida. Acreditamos que a morte de Cristo é o ponto exato da história no qual algo externo a nós, absolutamente inimaginável, se manifestou em nosso mundo. Se não conseguimos nem mesmo fazer uma imagem dos átomos que compõem esse mundo, é claro que não conseguiremos imaginar essa realidade superior. Aliás, se nos constatássemos capazes de compreendê-la integralmente, esse fato por si só mostraria que ela não é o que afirma ser - o inconcebível, o incriado, algo de fora da natureza que penetra nela como um raio. Você talvez pergunte de que isso nos serve se não podemos compreendê-lo. A resposta, porém, é fácil. Um homem pode jantar sem saber exatamente de que modo os alimentos o nutrem. Da mesma forma, pode aceitar a obra de Cristo sem entender como ela funciona; aliás, é certo que, para entendê-la, tem de aceitá-la primeiro.
Dizem-nos que Cristo morreu por nós, que sua morte nos lavou de nossos pecados e que, morrendo, ele destruiu a própria morte. Essa é fórmula. Esse é o cristianismo. E nisso que acreditamos. A meu ver, todas as teorias que construímos para explicar como a morte de Cristo operou tudo isso são perfeitamente dispensáveis: meros esquemas ou diagramas que podem ser deixados de lado quando não nos ajudam e que, mesmo quando são úteis, não devem ser tomados pela própria realidade. Não obstante, algumas teorias merecem um exame mais detido.
agüentar as conseqüências" e "pagar a conta" - ora, todos sabem que, quando uma pessoa cai num buraco, o problema de tirá-la de lá geralmente recai sobre os ombros de um bom amigo.
Em que tipo de "buraco" caíra o homem? Ele procurara ser auto-suficiente e se comportara como se pertencesse a si mesmo. Em outras palavras, o homem decaído não é simplesmente uma criatura imperfeita que precisa ser melhorada; é um rebelde que precisa depor as armas. Depor as armas, render-se, pedir perdão, dar-se conta de que tomou o caminho errado, estar disposto a começar uma vida nova do zero — só isso pode nos "tirar do buraco". Esse processo de rendição, movimento de marcha a ré a toda velocidade, é o que o cristianismo chama de arrependimento. Mas, veja só, o arrependimento não é nada agradável. E bem mais difícil que simplesmente engolir um sapo. Significa desaprender toda a presunção e a obediência à vontade própria que nos foram incutidas por milhares de anos; significa matar uma parte de si mesmo e submeter-se a uma espécie de morte. Na verdade, só um homem bom pode arrepender-se. E isso nos leva a um paradoxo. Só uma pessoa má precisa do arrependimento, mas só uma pessoa boa consegue arrepender-se perfeitamente. Quanto pior você é, mais precisa do arrependimento e menos é capaz de arrepender-se. A única pessoa capaz de arrepender-se perfeitamente seria uma pessoa perfeita - e não precisaria fazê-lo em absoluto.
Lembre que esse arrependimento, essa entrega voluntária à humilhação e a um tipo de morte não é algo que Deus exige de nós para que nos aceite de volta ou algo do qual pode nos livrar, se assim decidir. É simplesmente uma descrição de como é o próprio retorno a Deus. Se pedimos que ele nos aceite sem esse arrependimento, estamos na verdade pedindo para voltar sem voltar. Não é possível. Pois muito bem, temos de nos arrepender. Entretanto, a maldade que nos faz precisar disso nos impede de fazê-lo. Será que podemos arrepender-nos se Deus nos ajudar? Sim, mas o que significa essa ajuda? Significa que Deus, por assim dizer, coloca um pouco de si mesmo em nós. Empresta-nos um pouco da sua razão e assim nos tornamos capazes de pensar; nos dá um pouco do seu amor e, dessa maneira, amamos uns aos outros. Quando ensinamos uma criança a escrever, seguramos-lhe a mão, ajudando-a a desenhar as letras. Ou seja, ela só pode formar as letras porque nós as formamos. Nós amamos e raciocinamos porque Deus ama e raciocina e, enquanto isso, segura a nossa mão. Se não tivéssemos caído, tudo iria de vento em popa. Infelizmente, em nosso estado atual, precisamos da ajuda de Deus para fazer algo que, pela sua própria natureza, ele nunca faz: render-se, sofrer, submeter-se e morrer. A natureza divina não condiz em nada com esse processo. A estrada em que mais precisamos ser guiados por Deus é uma estrada que Deus, em sua própria natureza, nunca trilhou. Deus só pode partilhar conosco o que tem; mas ele não tem essas coisas em sua própria natureza....
[1] Provável menção aos astrônomos ingleses Arthur Stanley Eddington (1882-1944) e James Hopwood Jeans (1877-1946). (N. do R. T.)